domingo, 10 de fevereiro de 2008

αὐτὰρ ἔπειτα καὶ ἄλλως ἑψιάασθαι δαιτός / μολπῇ καὶ φόρμιγγι τά γὰρ ἀναθήματα δαιτός

Estava outro dia voltando a meditar sobre uma questão que há muito assolou um fórum de discussão do qual participava e voltou à minha preocupação recentemente. A questão original era a razão de as estéticas do modernismo não obterem sucesso – e por sucesso entendo não sucesso de público, isso até tiveram, basta ver Wozzeck que vive sendo montado pelo mundo, mas sucesso no sentido mais básico, de sucessão, nesse ponto todas as correntes musicais do século XX são extremamente estéreis.

Pode-se argumentar que Boulez representa de um certo modo uma seqüência ao atonalismo de Schönberg, como o próprio francês gosta de ver. Entretanto precisa-se manter em vista que Boulez extrapola em muito o ideal de Schönberg a ponto de ele ficar quase irreconhecível: a sequencialização de ritmos, dinâmicas, timbres choca-se de forma contundente com uma visão pós-romântica de Schönberg, a ponto de ser bastante discutível a sucessão de Schönberg no serialismo total de Babbitt, Boulez, etc.

O século XX dissolveu-se em centenas de tendências e escolas musicais a uma proporção de quase uma por compositor, há vários motivos para isto mas não desejo seguir esta linha aqui. O que é importante é um detalhe de todos eles: baseiam-se em uma organização racional que, de uma forma ou de outra, se punha em oposição ao “sistema” tonal.

Uma diferença essencial entre o “sistema” tonal e os outros sistemas do século XX é a diferença básica de origem. O chamado tonalismo jamais poderia ser chamado de sistema, pois é capaz de englobar teorias harmônicas tão distintas quanto Wagner e Lully, Bach e Liszt, tampouco ele surgiu da cabeça de algum teórico musical – como foram os “sistemas” modernos. Ele parte de uma base natural, a acústica e a física do som.

Isto vem dos gregos, a noção da nossa escala musical, que surge a partir da divisão de uma corda ressoante, cortando pela metade ½ temos a oitava, pelo terço 1/3 a quinta, como normalmente colocamos todas as proporções dentro da mesma oitava, estabelecemos que a base é 1 e pegamos a oitava da primeira quinta depois dessa oitava, dá 3:2, é apenas uma matemática simples. Se pegarmos a quinta da quinta, ou o terça parte da terça parte da corda original, temos 1/9, 9/8 dentro da escala, e vamos constituindo a escala tradicional, depois formamos a sexta maior: 27/16, a terça maior 81/64 e a sétima maior 243/128, a progressão é bem simples (3 x/2n+x) por isso que é chamado de ciclo de quintas. A música ocidental sempre pára no chamado coma pitagórico aumentado, pois já se trata de um intervalo muito dissonante 531441/524288 e simplesmente afina-se ele como uma oitava e (nos sistemas da renascença para cá) efetua-se o temperamento. Terminamos a escala, e agora só é possível teoricamente, triplicando a oitava original e conseguindo a quarta, 4/3 na escala que formamos; depois seguindo formamos a sétima menor, a terça menor e a sexta menor (são extamente os intervalos invertidos da escala ascendente, o motivo é mais do que óbvio).

Com base nesse sistema de afinação, que, apesar de natural, não é universal, mas dentro da cultura ocidental podemos considerar como tal, pois se trata do único utilizado, algumas particularidades estão já definidas. Especialmente quando permite-se o surgimento da polifonia (há um texto excelente do Popper sobre isso[quem diria, eu citando Popper!]), que é um evento até esperado se dermos as condições da música na baixa idade média: congregações religiosas cantando melodias pré-estabelecidas. De tal forma, partindo do acompanhamento em quintas e oitavas que, parece, já existia até na antiguidade, podemos permitir o surgimento das quartas apenas dobrando o baixo, e posteriormente, com a descoberta da possibilidade de melodias dentro dessa predisposição harmônica que o canto congregacional permite, vão surgindo as melodias secundárias, que dependem do baixo, mas mantém uma independência dessa melodia principal, que chamamos de cantus firmus.

Desde cedo, portanto, a polifonia deve ter necessariamente evoluído pelos graus conjuntos do ciclo de quintas (não os graus conjuntos da escala diatônica moderna, ela ainda não tinha nascido), aproveitando, portanto, os intervalos de quarta e quinta. Logo em seguida, surgem os intevalos de terça maior e menor, que não são consonâncias, mas dissonâncias medievais, basta olhar na tabela 81/64 e 32/27 são intervalos bem complexos, mas, na prática, mais estáveis do que as segundas e sétimas maiores (9/8 e 16/9), mas ainda bastante instáveis (que intervalos próximos de consonâncias muitas vezes são considerados consonâncias basta ver na afinação temperada moderna em que praticamente intervalo algum é consonante e ainda são considerados como tal – entretanto, trata-se de um dado da música prática, não da música teórica, especialmente a medieval).

A música medieval evolui precisamente nesses termos, os teóricos medievais costumavam não aceitar sequer a segunda e a sétima, mas na prática musica elas já começavam a existire. Outros intervalos mais “discordes”, de acordo com a terminologia da época, não foram usados no período de modo algum. É até bem famoso o status do trítono na música medieval, mas sobre isso já se falou muita bobagem.

Mas uma mudança na afinação será ainda mais importante para a história da música: com o crescimento do uso das terças, incluindo o uso de resoluções em terças na música renascentista, pouco a pouco passa a ser adotada a afinação justa, que consiste em dar um pequeno passo e simplificar um bocado a afinação, um pequeno movimento e a terça fica 80/64, ie. 5/4 e a terça menor passa a ser 30/25, ou 6/5. Intervalos que permitiam uma mínima consonância, passam a ser consonâncias muito mais próprias e são plenamente adotadas na prática musical.

O resultado disso é que as resoluções de terças, que já existem na idade média, multiplicam-se e tornam-se o padrão. A mudança que isso faz acontecer é completa, quase toda a música medieval, não interessa sua qualidade, baseia-se naquilo que podemos chamar de resolução intervalar, os diferentes intervalos da polifonia reúnem-se ao final, mas cada uma dessas resoluções é feita na base do intervalo, por exemplo, uma música que esteja paralelamente em dó, fá, lá admitiria uma resolução em fá, sib, fá, mas longe de ser uma cadência V-I, ela opera normalmente por etapa, dó desce para sib e lá volta para fá, isto acontece ainda não há consciência de acordes. Mas com a terça tornando-se uma consonância plena, a música começa a afastar-se do padrão intervalar, ou seja, imagina-se a sucessão de tensões e resoluções de intervalos, e passa a adotar o padrão cordal, as tensões e resoluções são feitas com acordes. Isso porque as relações entre terças são interpretadas como condições estáveis. É um processo bem longo, ainda no século XVII vamos ver a maioria dos compositores: Monteverdi, Purcell, Gibbons, etc, valer-se ainda de procedimentos intervalais. Mas a expansão provocada pela “consonantização” das terças deixou sua marca indelével na história da música, e parece inevitável que ela prosseguirá no estabelecimento do sistema tonal.

Tudo parece ter adquirido um ar de fatalismo, de necessidade. Mas podemos ver que tais desenvolvimentos ocorrem não por um desenvolvimento estético, mas pelas simples possibilidades que a série de quintas abre para a música. Parece-me natural que uma música que aceite a estabilidade dos intervalos de terça vá eventualmente adotar um sistema de acordes, mas ao mesmo tempo em toda a música tonal permanece a marca da sua origem no uníssono, que é o fim de toda a música: a polifonia nasce como uma pimenta no meio da monofonia e de certo modo essa monofonia é o objetivo da polifonia. Com isso as duas bases do sistema tonal subseqüente: a relação de tensão e repouso e o sistema cordal têm sua bases não na música barroca, mas sim em procedimentos muito mais antigos – a outra base, o surgimento da frase musical, tem também origem no canto das igrejas medievais, é afinal sobre versículos do saltério e da liturgia que as melodias do cantus firmus surgem.

Duas conclusões podem ser tiradas dessa origem histórica, a primeira é que muito do movimento e evolução da música no início da idade média e renascença não é arbitrário, mas deriva diretamente das condições inicias, a saber: o canto coral sobre textos religiosos e o ciclo de quintas. A primeira é um dado histórico, a segunda um dado físico.

Um outro tipo de música poderia ter surgido? A resposta é sim, porém, seria necessário você modificar essas duas propriedades: a primeira fazer a música surgir não das práticas litúrgicas da alta idade média, mas sim, por exemplo, alguma classe de música instrumental, e a segunda é utilizar uma outra escala musical que não seja a escala pitagórica (a escala pitagórica existe porque basicamente os gregos pararam no coma Pitagórico) que permitiria outros intevalos e, consequentemente, um outro desenvolvimento da harmonia e um sistema acústico diferente.

O mais interessante, entretanto, é a pergunta oposta. Dados esses dois inícios, a congregação da alta idade média e a afinação pitagórica, poderia haver outro tipo de música? A resposta que entretenho é não – ou melhor, se não mudasse por estas vias, seu único objetivo seria a estagnação. É por esta razão que outros tipos de música, como a música quartal, falharam redondamente: ela simplesmente não oferece os resultados que a harmonia de quintas oferece, e falo mais precisamente do intervalo de terça, que é base de uma tríade perfeita e também a soma de dois intervalos de segunda.

E a música dos anos seguintes, poderia ser diferente? Essa é a pergunta que toda essa digressão me provocou, a minha resposta tende a ser não no caso de avaliarmos apenas o domínio harmônico, em outras áreas as variáveis são muito mais amplas e qualquer análise torna-se mais do que um jogo de adivinhação. No entanto, o que ainda essa pergunta pode gerar é: mesmo a música barroca e clássica, poderiam ser diferentes sem a presença de seus compositores mais famosos? Eu tendo cada vez mais a perceber que não.

A música romântica e pós-romântica é uma área completamente diferente, pois é quando a consciência da série harmônica surge e que a atuação individual pode operar da maneira mais clara, como vemos com Schoenberg inter alios. Mas no barroco, vemos como a linguagem harmônica evolui de uma forma quase orgânica, como por exemplo no surgimento de diversas sextas “nacionais” (acordes baseados na inversão do acorde de dominante com a posterior variação da nota de base) cuja origem pertence tanto ao domínio da improvisação quanto as mudanças da idade média.

Qual a moral da história? A primeira é que boa parte da história da música é determinada pela física do ciclo de quintas, a segunda é que, por Schoenberg usar o mesmo ciclo de quintas, ele apenas em parte se afasta da harmonia tradicional, uma vez que as relações proporcionais ainda existem (e quem quer que tenha tocado Bartók sabe que a tendência para a consonância é irresistível). É por esta razão que toda a escola atonal está estritamente ligada ao expressionismo – por melhor que sejam as obras de Schoenberg, Berg e Webern (e algumas delas são esplêndidas mesmo) elas jamais se afastam da estética do medo, da insegurança e da loucura do expressionismo alemão (e também, pela natureza serial, é quase um dado original que toda esta música está mais próxima do tema e da variação do que qualquer de qualquer outra forma musical).

A “solução” de Schoenberg para o “problema” do sistema tonal jamais pode ser vista como completa, primeiro porque não anula as relações de proximidade, consonância e dissonância, que são a verdadeira base do sistema tonal, e segundo porque a única coisa que ele permite é uma relação intervalar arbitrária. Para solucionar esse “problema” (se é que ele realmente existe, mas na Alemanha da década de 1910 ele existia) a única maneira seria de abandonar a série harmônica, ou incrementá-la com novos tipos de relação intervalar.

Eu penso, portanto, que em termos de possibilidade, a microtonalidade é um caminho verdadeiramente promissor, pois há latente a utilização de novos tipos de consonância que podem ser utilizados para formar novas formas de harmonia. No entanto, os obstáculos para a microtonalidade são muito maiores do que para o serialismo, bastante pensar que seria impossível tocar uma obra microtonal no nosso piano moderno, o que fez de quase todas as obras completamente microtonais se concentrassem no campo marginal da música eletrônica.

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