domingo, 10 de fevereiro de 2008

αὐτὰρ ἔπειτα καὶ ἄλλως ἑψιάασθαι δαιτός / μολπῇ καὶ φόρμιγγι τά γὰρ ἀναθήματα δαιτός

Estava outro dia voltando a meditar sobre uma questão que há muito assolou um fórum de discussão do qual participava e voltou à minha preocupação recentemente. A questão original era a razão de as estéticas do modernismo não obterem sucesso – e por sucesso entendo não sucesso de público, isso até tiveram, basta ver Wozzeck que vive sendo montado pelo mundo, mas sucesso no sentido mais básico, de sucessão, nesse ponto todas as correntes musicais do século XX são extremamente estéreis.

Pode-se argumentar que Boulez representa de um certo modo uma seqüência ao atonalismo de Schönberg, como o próprio francês gosta de ver. Entretanto precisa-se manter em vista que Boulez extrapola em muito o ideal de Schönberg a ponto de ele ficar quase irreconhecível: a sequencialização de ritmos, dinâmicas, timbres choca-se de forma contundente com uma visão pós-romântica de Schönberg, a ponto de ser bastante discutível a sucessão de Schönberg no serialismo total de Babbitt, Boulez, etc.

O século XX dissolveu-se em centenas de tendências e escolas musicais a uma proporção de quase uma por compositor, há vários motivos para isto mas não desejo seguir esta linha aqui. O que é importante é um detalhe de todos eles: baseiam-se em uma organização racional que, de uma forma ou de outra, se punha em oposição ao “sistema” tonal.

Uma diferença essencial entre o “sistema” tonal e os outros sistemas do século XX é a diferença básica de origem. O chamado tonalismo jamais poderia ser chamado de sistema, pois é capaz de englobar teorias harmônicas tão distintas quanto Wagner e Lully, Bach e Liszt, tampouco ele surgiu da cabeça de algum teórico musical – como foram os “sistemas” modernos. Ele parte de uma base natural, a acústica e a física do som.

Isto vem dos gregos, a noção da nossa escala musical, que surge a partir da divisão de uma corda ressoante, cortando pela metade ½ temos a oitava, pelo terço 1/3 a quinta, como normalmente colocamos todas as proporções dentro da mesma oitava, estabelecemos que a base é 1 e pegamos a oitava da primeira quinta depois dessa oitava, dá 3:2, é apenas uma matemática simples. Se pegarmos a quinta da quinta, ou o terça parte da terça parte da corda original, temos 1/9, 9/8 dentro da escala, e vamos constituindo a escala tradicional, depois formamos a sexta maior: 27/16, a terça maior 81/64 e a sétima maior 243/128, a progressão é bem simples (3 x/2n+x) por isso que é chamado de ciclo de quintas. A música ocidental sempre pára no chamado coma pitagórico aumentado, pois já se trata de um intervalo muito dissonante 531441/524288 e simplesmente afina-se ele como uma oitava e (nos sistemas da renascença para cá) efetua-se o temperamento. Terminamos a escala, e agora só é possível teoricamente, triplicando a oitava original e conseguindo a quarta, 4/3 na escala que formamos; depois seguindo formamos a sétima menor, a terça menor e a sexta menor (são extamente os intervalos invertidos da escala ascendente, o motivo é mais do que óbvio).

Com base nesse sistema de afinação, que, apesar de natural, não é universal, mas dentro da cultura ocidental podemos considerar como tal, pois se trata do único utilizado, algumas particularidades estão já definidas. Especialmente quando permite-se o surgimento da polifonia (há um texto excelente do Popper sobre isso[quem diria, eu citando Popper!]), que é um evento até esperado se dermos as condições da música na baixa idade média: congregações religiosas cantando melodias pré-estabelecidas. De tal forma, partindo do acompanhamento em quintas e oitavas que, parece, já existia até na antiguidade, podemos permitir o surgimento das quartas apenas dobrando o baixo, e posteriormente, com a descoberta da possibilidade de melodias dentro dessa predisposição harmônica que o canto congregacional permite, vão surgindo as melodias secundárias, que dependem do baixo, mas mantém uma independência dessa melodia principal, que chamamos de cantus firmus.

Desde cedo, portanto, a polifonia deve ter necessariamente evoluído pelos graus conjuntos do ciclo de quintas (não os graus conjuntos da escala diatônica moderna, ela ainda não tinha nascido), aproveitando, portanto, os intervalos de quarta e quinta. Logo em seguida, surgem os intevalos de terça maior e menor, que não são consonâncias, mas dissonâncias medievais, basta olhar na tabela 81/64 e 32/27 são intervalos bem complexos, mas, na prática, mais estáveis do que as segundas e sétimas maiores (9/8 e 16/9), mas ainda bastante instáveis (que intervalos próximos de consonâncias muitas vezes são considerados consonâncias basta ver na afinação temperada moderna em que praticamente intervalo algum é consonante e ainda são considerados como tal – entretanto, trata-se de um dado da música prática, não da música teórica, especialmente a medieval).

A música medieval evolui precisamente nesses termos, os teóricos medievais costumavam não aceitar sequer a segunda e a sétima, mas na prática musica elas já começavam a existire. Outros intervalos mais “discordes”, de acordo com a terminologia da época, não foram usados no período de modo algum. É até bem famoso o status do trítono na música medieval, mas sobre isso já se falou muita bobagem.

Mas uma mudança na afinação será ainda mais importante para a história da música: com o crescimento do uso das terças, incluindo o uso de resoluções em terças na música renascentista, pouco a pouco passa a ser adotada a afinação justa, que consiste em dar um pequeno passo e simplificar um bocado a afinação, um pequeno movimento e a terça fica 80/64, ie. 5/4 e a terça menor passa a ser 30/25, ou 6/5. Intervalos que permitiam uma mínima consonância, passam a ser consonâncias muito mais próprias e são plenamente adotadas na prática musical.

O resultado disso é que as resoluções de terças, que já existem na idade média, multiplicam-se e tornam-se o padrão. A mudança que isso faz acontecer é completa, quase toda a música medieval, não interessa sua qualidade, baseia-se naquilo que podemos chamar de resolução intervalar, os diferentes intervalos da polifonia reúnem-se ao final, mas cada uma dessas resoluções é feita na base do intervalo, por exemplo, uma música que esteja paralelamente em dó, fá, lá admitiria uma resolução em fá, sib, fá, mas longe de ser uma cadência V-I, ela opera normalmente por etapa, dó desce para sib e lá volta para fá, isto acontece ainda não há consciência de acordes. Mas com a terça tornando-se uma consonância plena, a música começa a afastar-se do padrão intervalar, ou seja, imagina-se a sucessão de tensões e resoluções de intervalos, e passa a adotar o padrão cordal, as tensões e resoluções são feitas com acordes. Isso porque as relações entre terças são interpretadas como condições estáveis. É um processo bem longo, ainda no século XVII vamos ver a maioria dos compositores: Monteverdi, Purcell, Gibbons, etc, valer-se ainda de procedimentos intervalais. Mas a expansão provocada pela “consonantização” das terças deixou sua marca indelével na história da música, e parece inevitável que ela prosseguirá no estabelecimento do sistema tonal.

Tudo parece ter adquirido um ar de fatalismo, de necessidade. Mas podemos ver que tais desenvolvimentos ocorrem não por um desenvolvimento estético, mas pelas simples possibilidades que a série de quintas abre para a música. Parece-me natural que uma música que aceite a estabilidade dos intervalos de terça vá eventualmente adotar um sistema de acordes, mas ao mesmo tempo em toda a música tonal permanece a marca da sua origem no uníssono, que é o fim de toda a música: a polifonia nasce como uma pimenta no meio da monofonia e de certo modo essa monofonia é o objetivo da polifonia. Com isso as duas bases do sistema tonal subseqüente: a relação de tensão e repouso e o sistema cordal têm sua bases não na música barroca, mas sim em procedimentos muito mais antigos – a outra base, o surgimento da frase musical, tem também origem no canto das igrejas medievais, é afinal sobre versículos do saltério e da liturgia que as melodias do cantus firmus surgem.

Duas conclusões podem ser tiradas dessa origem histórica, a primeira é que muito do movimento e evolução da música no início da idade média e renascença não é arbitrário, mas deriva diretamente das condições inicias, a saber: o canto coral sobre textos religiosos e o ciclo de quintas. A primeira é um dado histórico, a segunda um dado físico.

Um outro tipo de música poderia ter surgido? A resposta é sim, porém, seria necessário você modificar essas duas propriedades: a primeira fazer a música surgir não das práticas litúrgicas da alta idade média, mas sim, por exemplo, alguma classe de música instrumental, e a segunda é utilizar uma outra escala musical que não seja a escala pitagórica (a escala pitagórica existe porque basicamente os gregos pararam no coma Pitagórico) que permitiria outros intevalos e, consequentemente, um outro desenvolvimento da harmonia e um sistema acústico diferente.

O mais interessante, entretanto, é a pergunta oposta. Dados esses dois inícios, a congregação da alta idade média e a afinação pitagórica, poderia haver outro tipo de música? A resposta que entretenho é não – ou melhor, se não mudasse por estas vias, seu único objetivo seria a estagnação. É por esta razão que outros tipos de música, como a música quartal, falharam redondamente: ela simplesmente não oferece os resultados que a harmonia de quintas oferece, e falo mais precisamente do intervalo de terça, que é base de uma tríade perfeita e também a soma de dois intervalos de segunda.

E a música dos anos seguintes, poderia ser diferente? Essa é a pergunta que toda essa digressão me provocou, a minha resposta tende a ser não no caso de avaliarmos apenas o domínio harmônico, em outras áreas as variáveis são muito mais amplas e qualquer análise torna-se mais do que um jogo de adivinhação. No entanto, o que ainda essa pergunta pode gerar é: mesmo a música barroca e clássica, poderiam ser diferentes sem a presença de seus compositores mais famosos? Eu tendo cada vez mais a perceber que não.

A música romântica e pós-romântica é uma área completamente diferente, pois é quando a consciência da série harmônica surge e que a atuação individual pode operar da maneira mais clara, como vemos com Schoenberg inter alios. Mas no barroco, vemos como a linguagem harmônica evolui de uma forma quase orgânica, como por exemplo no surgimento de diversas sextas “nacionais” (acordes baseados na inversão do acorde de dominante com a posterior variação da nota de base) cuja origem pertence tanto ao domínio da improvisação quanto as mudanças da idade média.

Qual a moral da história? A primeira é que boa parte da história da música é determinada pela física do ciclo de quintas, a segunda é que, por Schoenberg usar o mesmo ciclo de quintas, ele apenas em parte se afasta da harmonia tradicional, uma vez que as relações proporcionais ainda existem (e quem quer que tenha tocado Bartók sabe que a tendência para a consonância é irresistível). É por esta razão que toda a escola atonal está estritamente ligada ao expressionismo – por melhor que sejam as obras de Schoenberg, Berg e Webern (e algumas delas são esplêndidas mesmo) elas jamais se afastam da estética do medo, da insegurança e da loucura do expressionismo alemão (e também, pela natureza serial, é quase um dado original que toda esta música está mais próxima do tema e da variação do que qualquer de qualquer outra forma musical).

A “solução” de Schoenberg para o “problema” do sistema tonal jamais pode ser vista como completa, primeiro porque não anula as relações de proximidade, consonância e dissonância, que são a verdadeira base do sistema tonal, e segundo porque a única coisa que ele permite é uma relação intervalar arbitrária. Para solucionar esse “problema” (se é que ele realmente existe, mas na Alemanha da década de 1910 ele existia) a única maneira seria de abandonar a série harmônica, ou incrementá-la com novos tipos de relação intervalar.

Eu penso, portanto, que em termos de possibilidade, a microtonalidade é um caminho verdadeiramente promissor, pois há latente a utilização de novos tipos de consonância que podem ser utilizados para formar novas formas de harmonia. No entanto, os obstáculos para a microtonalidade são muito maiores do que para o serialismo, bastante pensar que seria impossível tocar uma obra microtonal no nosso piano moderno, o que fez de quase todas as obras completamente microtonais se concentrassem no campo marginal da música eletrônica.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Vive la France

Todos homines bonae voluntatis têm nojo da França contemporânea, isso é claro, quem é que em sã consciência vai gostar da terra do marechal Pétain? Mas esse nojo não precisa se estender à França real, terra de Joana d'Arc, Luís IX, Henrique IV, Lully, Rameau, Ronsard, Racine e tantos outros. Para não sujar a boca com a Marselhesa, existe a canção apropriada para esta França, Vive Henri IV:



É uma canção, ao visto, escrita pelo importante compositor de Carroy, o mesmo que comporia o Requiem para os reis da França. Ela foi feita em celebração ao rei Henrique IV, que publicou o Edito de Nantes entre muitas outras coisas, que lhe valeu o título de Le Grand. Mas com o tempo tornou-se muito popular, com o uso cada vez mais frequente da Marselhesa pelo governo revolucionário, ela ganhou um significado ainda maior, passou a representar e unir todos os que desejavam a restauração, de modo que nos anos subsequentes (e até hoje) ela passou a possuir esse forte significado. Apesar de hoje não muito famosa, ela é importante na história cultural. Há dois momentos de que me lembro, no final da ópera Il Viaggio a Reims, ela é citada e cantada por toda a orquestra, e chegando no final de Guerra e Paz um prisioneiro francês inicia a canção que logo se espalha para todos, russos e franceses. No primeiro caso é o símbolo triunfante da restauração dos bourbons, pois a ópera foi escrita para a comemoração da coroação de Carlos II da França, e ela é basicamente uma espécie de Congresso de Viena musical.; no segundo caso, é o símbolo mais profundo da derrocada de Napoleão, o sinal da restauração que há de vir. No filme de Sergei Bondarchuk esta cena é muito bonita:



PS: Acabei de saber que tal canção também aparece no final do balé A Bela Adormecida de Tchaivkosky, em outra referência à França real.

πόρεν δ' ὅ γε σήματα λυγρὰ

Acabei de receber a Ilíada do West, e num breve coup d'oeil pude verificar as grandes qualidades e os grandes defeitos dessa edição. A começar, ela é overwhelming, 3 volumes para os 16 mil versos, da mítica editora Teubner, é realmente impressionante, cerca de metade da página é ocupada pelo aparato crítico que, por sua vez é dividido no aparato relacionado às edições alexandrinas, com informações de Aristarco, Zenódoto, etc, e na parte de baixo com as notas críticas ordinárias com informação dos manuscritos medievais. Trata-se de uma grande decisão, pois a longuíssima e muito frutífera discussão sobre o texto de homero da escola Alexandrina (que podemos redescobrir após a histórica publicação dos escólios alpha por Villoison, naquele que pode ser chamado de momento mais importante da história da filologia) nos deixa em uma posição completamente diferente da de um texto ordinário, como, par example, as comédias de Aristófanes.

De um certo modouma edição de Homero é completamente diferente da edição de qualquer outro texto, e sempre ao fazer uma edição homérica está-se produzindo mais um item na longuíssima questão homérica. West está mais do que ciente disto e produz uma alternativa completamente radical: ele deseja reproduzir o texto que na sua opinião foi ditado e produzido no século VI a.C. Um filólogo sóbrio normalmente contenta-se em reproduzir o arquétipos das edições modernas, o que normalmente nos deixa com um texto que se aproximaria do século VIII d.C., apenas com este dado pode-se ver como a tentativa de West é ousada.

O problema mais óbvio, e é um ponto central, é que, a despeito dos enormes argumentos de West (na verdade ele costuma apenas seguir o que fora proposto por Adam Parry, com os quais eu mesmo concordo), nem todas as razões estão provadas e há muita gente boa que produz teorias alternativas.. O que faz com que as várias decisões, como a de legar vários e vários blocos de versos para as notas críticas, e às vezes mesmo alterar a posição de versos inteiros no poema, seguindo sugestão de Zenódoto (há quem o acuse de um viés Zenodotiano, a o ponto onde se é possível chegar com o odium philologicum), sejam absolutamente radicais, afinta, são meras sugestões. Portanto, apesar do enorme trabalho, ficamos com uma edição que é um produto extremamente dependente de uma visão da obra de Homero, à qual se somam várias decisões radicais e talvez duvidosas. De forma com que você é privado às vezes de uma visão mais sóbria e tradicional de Homero.

Por esta razão que fiquei desapontado com o imenso trabalho do West. A edição de van Thiel, que saiu pela Olms na década de 90 é bastante mais sóbria e ainda vem com uma curiosidade: os sinais alexandrinos estão todos presentes (os gramáticos inseriram uma série de sinais no texto que possuem vários sentidos, desde a dúvida da autenticidade de um verso, até um comentário sobre a qualidade de outros), de forma que possuímos o julgamento deles, mas sem tomar partido. van Thiel é um dos últimos expoentes da quase morta linha analítica de Homero, aqueles que pensa(va)m que Homero constitui em um imenso patch-work de autores diversos. Apesar disso ele raramente deixa-se levar por suas convicções e produz uma obra bastante sóbria que nos introduz o texto de Homero de forma limpa para que nós mesmos possamos tirar nossas conclusões a seu respeito. Das novas Ilíadas, é esta que recomendo.

Concluindo, pode-se dizer, tal qual aquele bon mot de que os homens gostam das loiras, mas casam-se com as morenas, que os filólogos gostam dos oralistas e compram seus livros, mas acabam usando os textos dos analíticos.

domingo, 3 de fevereiro de 2008

πολλῶν δ'ἀνθρώπων ἴδεν ἄστεα καὶ νόον ἔγνω

Terminei recentemente a leitura do grande romance de Lev Tolstoi, Guerra e Paz. Comentários sobre tradução mais ao final. Já havia lido na adolescência, pouco me lembrava de seus fatos e sem dúvida essa releitura finalmente me permitiu avaliar esta monumental obra em sua inteira grandeza. Normalmente a leitura de tais grandes clássicos na vida da maioria das pessoas concentra-se na juventude e na velhice, certamente por serem períodos de maior disponibilidade de tempo e onde se possui, numa, a maior vitalidade e, noutra, a maior paciência para se empreender leituras de tal fôlego. Adotando uma postura por assim dizer clássica da literatura é preciso lembrar que enquanto a leitura de grande literatura certamente ajuda na formação do caráter do jovem, quase sempre lhe falta a profundidade de espírito para apreendê-la em sua integridade, quando se trata de obras mais complexas (como, por exemplo os romances de Dostoievski) a obra pode até ser lida de uma maneira degradante. Quanto à leitura na velhice, embora evidentemente seja a idade que mais permita a perfeita fruição da obra, é também a menos frutífera, de onde tiramos a conclusão, meio óbvia, de que tais grandes obras devem ser lidas sempre.

Certamente poucas obras ostentam de forma tão categórica o estatuto de grande obra, clássico, quanto Guerra e Paz. Evidentemente sua extensão, quase mítica para os que não leram, não é a razão para tal honraria, E o vento levou, um paperback de quinta categoria, possui quase a mesma extensão e jamais poderia ser elevado ao mesmo nível do romance de Tolstoi. Guerra e Paz é grande pela extensão, não da obra, mas do quadro que Tolstoi faz da vida de três famílias russas no início do século XIX e da guerra entre o “inimigo do gênero humano”, c’est à dire Napoleão B(u)onaparte, e a Rússia do tsar Alexandre I. Poucas obras que li, e nem são tão poucas, possuem tamanha amplitude emocional, partindo do extremo de solidariedade que vemos com Platon Karataiev até o ponto mais baixo de degradação de Dolokhov.

Mas porque a guerra e a paz? Essa é uma questão muito discutida. A guerra apresenta-se de forma bastante evidente nas soberbas descrições de batalhas, especialmente nas de Schöngraben, Austerliz e Borodino, descritas com uma precisão e um detalhe únicos na história da literatura moderna, descrições mais vivas você só encontra naqueles poetas da primeira guerra, Wilifried Owen, por exemplo. Nas grandes seções de batalha, que são basicamente a campanha na Áustria em 1805 e a invasão de 1812 que no geral devem ocupar não mais de um quarto de todo o livro, temos essa descrição soberba do frenesi de Nicolai em Schöngraben quando, malgré lui, ele se torna um herói de guerra, o estado lamentável de Andrei em Austerliz, que ao partir para a glória torna-se prisioneiro de guerra e na sua magnífica epifania contempla a grandeza do universo e a pequenez daquele pequeno ex-comandante de artilharia corso que acha-se o senhor do mundo mas mais refém do destino do que ninguém. E, por fim, a grandiosa batalha de Borodino vista dos olhos de Pierre que sendo civil e não tendo nenhum treinamento militar mergulha do front na sua própria versão da katábasis ao inferno.

A guerra é, portanto, algo claro, mas o que seria a paz? Podemos imaginar de uma forma dupla, a primeira, seria, obviamente, a ausência de guerra, e esta vemos nos salões petersburgueses até no momento da ocupação de Moscou, vemos também nos dramas familiares de Natasha, de Maria e de todos os outros personagens. Mas também podemos interpretar a guerra como a guerra de paixões, sendo a paz uma forma de libertação, a ἀταραξία dos filósofos gregos, um cessar das convulsões causadas pela maldade humana, assim, a única paz existente está no final do livro.

Creio que ambas interpretações sejam igualmente válidas. Mas apesar de óbvia, tendo a esposar a primeira pelo fato de haver no livro não apenas essa alternância entre cenas militares e cenas civis, na verdade isto deriva da própria natureza da guerra em questão. Certamente se esse romance, ao contrário de Война и мир chamasse Guerre et Paix, poderíamos ter essa mera sucessão de cenas entre o campo de batalha e os salões de Paris. Mas a invasão napoleônica da Rússia é a primeira de uma maneira muito diferente de guerrear, é a guerra patriótica, a Отечественная война em russo. A partir deste ponto a Guerra, que no primeiro livro se trava de forma tão distante, nas planícies austríacas, é distante não apenas dos russos mas, de um certo modo, até para os habitantes da Viena ocupada que se divertem hospedando l’empéreur, ao cegar à Rússia torna-se uma guerra total que entranha e atinge todas as camadas da sociedade russa, dos nobres russos obrigados a abandonar Moscou aos habitantes que são abandonados aos franceses, aos saques e ao incêndio. Assim, Guerra e Paz evolui de categorias distintas até a grande conflagração de onde todas as vidas saem mudadas: pela morte, pelo saque, pelo abandono, mas também pela solidariedade de Nicolai e Natasha e pela curiosidade de Pierre

Apesar do incrível número de personagens, algumas contagem dão mais de 200, outras mais de 500, o romance inteiro circula ao redor de três personagens: Pierre Bezukhov, Natasha Rostova e Andrei Bolkonski e isto que dá toda a liga de sua matéria à primeira vista difusa. Mas ainda mais do que a história desses três personagens, amigos entre si, e ainda apesar da popularidade da trágica história de Andrei, o principal personagem do livro é o conde Pierre Bezukhov. É principalmente sob seus olhos que se descortina aquela que talvez seja a grande questão do livro: no que consiste a grandeza humana?

Pierre aparece como um jovem bastardo recém chegado do exterior, gauche, sem grande tato social. Para nenhum outro personagem do livro a expressão de Tolstoi será mais clara: a roda da fortuna gira. Como todos os jovens de sua época, Pierre é um entusiasta das novas doutrinas vindas da França e, como devia se esperar, de Napoleão. A história de L’russe bezuhof é a versão de Tolstoi da Bildung dos romances alemães, sua curiosidade e busca de sentido na vida tomam um longo caminho, da entrada na maçonaria à curiosa e inesquecível peregrinação ao front da batalha de Borodino, a sua estada na Moscou ocupada crendo que haverá de ser o libertador da Rússia por meio do assassinato de Napoleão, Pierre é o que mais viu gentes, mais conheceu suas paixões, mais viu cidades, até sua sede de conhecimento e de sentido completar-se no desfecho da narrativa.

Mas sem dúvida nenhuma passagem é mais significativa do que a histórica cena da batalha de Borodino, com o casamento falido, sem muitas perspectivas pessoais, Pierre se diverte pensando que ele haverá de salvar a Rússia, dessa forma arma um batalhão de milícia e envia para o front, mais tarde ele mesmo decide ver o que era aquilo. É a versão moderna da katábasis, a descida aos infernos, que vai se estender até sua estada em Moscou e seu cativo. Ele termina por conhecer a desordem dos campos de batalha, a dissipação da Moscou em chamas e as máximas provações do cativeiro. Pierre é o máximo espectador, raramente em posição ativa, tudo se torna para ele elementos da sua incessante busca por conhecimento e sabedoria. Ele acaba por trocar o conhecimento teórico dos franceses iluministas por um dos mais profundos mergulhos nas paixões humanas, uma viagem única.

Andrei, ao contrário de Pierre, jamais consegue se desligar de suas paixões, isso que o torna mais palatável para o leitor moderno, ele é o pendant pessimista, quase niilista, da sede de conhecimento de Bezukhov. Para quem a vida nada mais é do que vaidade, morte e destruição, de um certo modo ele apenas apresenta uma mudança que é a mudança da vaidade guerreira para a máxima desilusão no campo de Austerlitz. A cena do seu ferimento, feito na tentativa tola de levantar a bandeira sob forte assalto da artilharia francesa e sua convalescência no mesmo campo quando depois de contemplar a matança humana e cenas de extrema crueldade ele vislumbra o céu de Austerlitz. Esse céu imenso e completamente alheio a Napoleão, a Kutuzov, a Alexandre, esse céu encerra como poucas metáforas na história da literatura, a completa pequenez humana e a eterna vaidade de todos que se julgam grandes, e quem mais se julgou grande do que o corso que pergunta a Andrei se ele está bem, quando este é transportado para as ambulâncias?

Outra “personagem” inesquecível do romance é o céu, esse céu escuro, misterioso de Austerliz, mas também o auspicioso céu de 1811 cujo cometa anunciava a Pierre, e unicamente a ele, os eventos tão extraordinários do ano seguinte. Ao mesmo tempo que, à sua completa revelia, o carro que passava levando seu cunhado estava no meio de ações igualmente extraordinárias.

Mas além do círculo íntimo das histórias de Natasha, Andrei e Pierre, há o círculo da guerra, que raramente entra em contato, e nele Tolstoi destaca dois personagens: Napoleão e Kutuzov. Napoleão começa em Austerliz como o personagem distante, grandioso, que desbaratou os exércitos de Áustria e Rússia unidos, à medida que ele entra na Rússia, mas nos aproximamos dele, mais Tolstoi nos relata seus pensamentos e seus desejos até que, tal como numa tragédia, a ele revela-se a suprema peripédia da grandeza e do poder que se lhe afiguravam, ele aparece derrotado, humilhado em uma guerra que ele não consegue controlar até fugir com sua Grand Armée dissolvendo-se na retirada de Moscou. Kutuzov atua do outro lado e mostra-se o completo oposto, longe da grandeza de Napoleão, ele sabe que nada pode-se fazer numa guerra e que seus dois principais soldados chamam-se paciência e tempo. Ao contrário de Napoleão, é completamente ignorado e ridicularizado pelos seus semelhantes, mas termina por ser o responsável pela vitória final.

Apesar de uma complexidade que eu só pude arranhar nestas linhas é um romance que dura bem menos do que parece, certamente menos de um décimo da Recherche du temps perdu, pelo menos para mim o Caminho de Swann me foi mais lento e pesado do que todos o romance. Tolstoi tem alguns golpes de escrita muito interessante, seu domínio da narração é excelente, acho digno de nota como ele é capaz de usar e por em evidência a narração em terceira pessoa, mas nunca completamente onisciente, dessa forma ele consegue nos proporcionar a mesma surpresa dos personagens do romance, mesmo quando a gente pode deduzir qual seja a surpresa (muitas vezes ela fora narrada uma centena de páginas anteriormente). O mesmo tipo de narração Tolstoi iria utilizar no Anna Karenina, de forma até mais radical, nas descrições tão detalhadas dos estados mentais, lembro aqui do célebre fluxo de consciência de Anna na sétima parte e também de Daria Oblonskaia em vários momentos. Em Guerra e Paz não chega a tanto, mas esse uso sutil dos focos é muito interessante.

Todos os que leram o romance (e no meu ambiente não é um grupo grande: é a minha profesora de russo e uma professora de teoria da literatura) reclamam das divagações de Tolstoi, no começo elas praticamente não existem, mas a partir da invasão francesa elas crescem e ganham um grande vulto, de minha parte servem de um interessante ensaio filosófico-histórico que não é de se desprezar. O que é realmente problemático é que a história acaba umas 40 páginas antes do fim do livro, depois segue-se um mini-tratado sobre o livre-arbítrio, não é ruim, mas certamente é um tremendo de um anti-clímax, como é um anti-clímax todo o epílogo. Isso também acontece na Anna Karenina, de qualquer forma, Tolstoi os usa para fechar o romance, e é útil. O que é seguro é que Tolstoi não se vale dos finais apocalípticos de Dostoievski.

Uma outra técnica que Tolstoi domina e é especialmente inteligente é da introdução das personagens, principais, tal qual uma sinfonia de Haydn, não aparecem de uma vez, mas são longamente introduzidos na trama. Em Guerra e paz o livro começa em um sarau de Anna Pavlovna, personagem que é completamente irrelevante no resto do livro, em Anna Karenina começa com a crise conjugal dos Oblonski, que são personagens importantes, mas não os quatro principais. Tolstoi sabe introduzir-nos na trama de uma maneira magistral, sem longos prelúdios narrativo-descritivos (a grande falha de Balzac) e sem entradas demasiado bruscas. A única entrada brusca é das crianças, Natasha, Pétia e Kolya Rostov, que parecem irrelevantes no início de 1805, mas tornar-se-ão tão importantes no futuro breve.

É desse palco de paixões, de vaidades, mas que se mostra completamente dependente de forças maiores, que Tolstoi escreve. E é principalmente da busca humana por grandeza, que só pode ser resumida com uma frase do próprio livro:

Для нас, с данной нам Христом мерой хорошего и дурного, нет неизмеримого. И нет величия там, где нет простоты, добра и правды.

Para nós, com a medida nos dada por Cristo do bom e do ruim, não há incomensurável. E não há grandeza onde lá não haja simplicidade, bondade e verdade.

Observações: li uma tradução do francês (não me consta que haja traduções diretas) da editora Ediouro uma edição supostamente de luxo. Entretanto é horrível, a começar pela tradução, dá para pegar erros de tradução do francês, erros de tradução do russo e eventualmente aquele nonsense naturalmente gerado pela tradução indireta, não chega a atrapalhar a leitura do todo, mas às vezes é confuso, comparei várias passagens no original e não foge muito. A qualidade da edição é bem inferior, há, nos últimos dois volumes, uma média de uma gralha por página e um erro de gramática a cada dez, normalmente coisa boba, concordância, mas é inaceitável para qualquer padrão de edição. Inferior mesmo aos bons manuscritos medievais, mais parecendo aqueles rascunhos de Oxirrinco.