domingo, 3 de fevereiro de 2008

πολλῶν δ'ἀνθρώπων ἴδεν ἄστεα καὶ νόον ἔγνω

Terminei recentemente a leitura do grande romance de Lev Tolstoi, Guerra e Paz. Comentários sobre tradução mais ao final. Já havia lido na adolescência, pouco me lembrava de seus fatos e sem dúvida essa releitura finalmente me permitiu avaliar esta monumental obra em sua inteira grandeza. Normalmente a leitura de tais grandes clássicos na vida da maioria das pessoas concentra-se na juventude e na velhice, certamente por serem períodos de maior disponibilidade de tempo e onde se possui, numa, a maior vitalidade e, noutra, a maior paciência para se empreender leituras de tal fôlego. Adotando uma postura por assim dizer clássica da literatura é preciso lembrar que enquanto a leitura de grande literatura certamente ajuda na formação do caráter do jovem, quase sempre lhe falta a profundidade de espírito para apreendê-la em sua integridade, quando se trata de obras mais complexas (como, por exemplo os romances de Dostoievski) a obra pode até ser lida de uma maneira degradante. Quanto à leitura na velhice, embora evidentemente seja a idade que mais permita a perfeita fruição da obra, é também a menos frutífera, de onde tiramos a conclusão, meio óbvia, de que tais grandes obras devem ser lidas sempre.

Certamente poucas obras ostentam de forma tão categórica o estatuto de grande obra, clássico, quanto Guerra e Paz. Evidentemente sua extensão, quase mítica para os que não leram, não é a razão para tal honraria, E o vento levou, um paperback de quinta categoria, possui quase a mesma extensão e jamais poderia ser elevado ao mesmo nível do romance de Tolstoi. Guerra e Paz é grande pela extensão, não da obra, mas do quadro que Tolstoi faz da vida de três famílias russas no início do século XIX e da guerra entre o “inimigo do gênero humano”, c’est à dire Napoleão B(u)onaparte, e a Rússia do tsar Alexandre I. Poucas obras que li, e nem são tão poucas, possuem tamanha amplitude emocional, partindo do extremo de solidariedade que vemos com Platon Karataiev até o ponto mais baixo de degradação de Dolokhov.

Mas porque a guerra e a paz? Essa é uma questão muito discutida. A guerra apresenta-se de forma bastante evidente nas soberbas descrições de batalhas, especialmente nas de Schöngraben, Austerliz e Borodino, descritas com uma precisão e um detalhe únicos na história da literatura moderna, descrições mais vivas você só encontra naqueles poetas da primeira guerra, Wilifried Owen, por exemplo. Nas grandes seções de batalha, que são basicamente a campanha na Áustria em 1805 e a invasão de 1812 que no geral devem ocupar não mais de um quarto de todo o livro, temos essa descrição soberba do frenesi de Nicolai em Schöngraben quando, malgré lui, ele se torna um herói de guerra, o estado lamentável de Andrei em Austerliz, que ao partir para a glória torna-se prisioneiro de guerra e na sua magnífica epifania contempla a grandeza do universo e a pequenez daquele pequeno ex-comandante de artilharia corso que acha-se o senhor do mundo mas mais refém do destino do que ninguém. E, por fim, a grandiosa batalha de Borodino vista dos olhos de Pierre que sendo civil e não tendo nenhum treinamento militar mergulha do front na sua própria versão da katábasis ao inferno.

A guerra é, portanto, algo claro, mas o que seria a paz? Podemos imaginar de uma forma dupla, a primeira, seria, obviamente, a ausência de guerra, e esta vemos nos salões petersburgueses até no momento da ocupação de Moscou, vemos também nos dramas familiares de Natasha, de Maria e de todos os outros personagens. Mas também podemos interpretar a guerra como a guerra de paixões, sendo a paz uma forma de libertação, a ἀταραξία dos filósofos gregos, um cessar das convulsões causadas pela maldade humana, assim, a única paz existente está no final do livro.

Creio que ambas interpretações sejam igualmente válidas. Mas apesar de óbvia, tendo a esposar a primeira pelo fato de haver no livro não apenas essa alternância entre cenas militares e cenas civis, na verdade isto deriva da própria natureza da guerra em questão. Certamente se esse romance, ao contrário de Война и мир chamasse Guerre et Paix, poderíamos ter essa mera sucessão de cenas entre o campo de batalha e os salões de Paris. Mas a invasão napoleônica da Rússia é a primeira de uma maneira muito diferente de guerrear, é a guerra patriótica, a Отечественная война em russo. A partir deste ponto a Guerra, que no primeiro livro se trava de forma tão distante, nas planícies austríacas, é distante não apenas dos russos mas, de um certo modo, até para os habitantes da Viena ocupada que se divertem hospedando l’empéreur, ao cegar à Rússia torna-se uma guerra total que entranha e atinge todas as camadas da sociedade russa, dos nobres russos obrigados a abandonar Moscou aos habitantes que são abandonados aos franceses, aos saques e ao incêndio. Assim, Guerra e Paz evolui de categorias distintas até a grande conflagração de onde todas as vidas saem mudadas: pela morte, pelo saque, pelo abandono, mas também pela solidariedade de Nicolai e Natasha e pela curiosidade de Pierre

Apesar do incrível número de personagens, algumas contagem dão mais de 200, outras mais de 500, o romance inteiro circula ao redor de três personagens: Pierre Bezukhov, Natasha Rostova e Andrei Bolkonski e isto que dá toda a liga de sua matéria à primeira vista difusa. Mas ainda mais do que a história desses três personagens, amigos entre si, e ainda apesar da popularidade da trágica história de Andrei, o principal personagem do livro é o conde Pierre Bezukhov. É principalmente sob seus olhos que se descortina aquela que talvez seja a grande questão do livro: no que consiste a grandeza humana?

Pierre aparece como um jovem bastardo recém chegado do exterior, gauche, sem grande tato social. Para nenhum outro personagem do livro a expressão de Tolstoi será mais clara: a roda da fortuna gira. Como todos os jovens de sua época, Pierre é um entusiasta das novas doutrinas vindas da França e, como devia se esperar, de Napoleão. A história de L’russe bezuhof é a versão de Tolstoi da Bildung dos romances alemães, sua curiosidade e busca de sentido na vida tomam um longo caminho, da entrada na maçonaria à curiosa e inesquecível peregrinação ao front da batalha de Borodino, a sua estada na Moscou ocupada crendo que haverá de ser o libertador da Rússia por meio do assassinato de Napoleão, Pierre é o que mais viu gentes, mais conheceu suas paixões, mais viu cidades, até sua sede de conhecimento e de sentido completar-se no desfecho da narrativa.

Mas sem dúvida nenhuma passagem é mais significativa do que a histórica cena da batalha de Borodino, com o casamento falido, sem muitas perspectivas pessoais, Pierre se diverte pensando que ele haverá de salvar a Rússia, dessa forma arma um batalhão de milícia e envia para o front, mais tarde ele mesmo decide ver o que era aquilo. É a versão moderna da katábasis, a descida aos infernos, que vai se estender até sua estada em Moscou e seu cativo. Ele termina por conhecer a desordem dos campos de batalha, a dissipação da Moscou em chamas e as máximas provações do cativeiro. Pierre é o máximo espectador, raramente em posição ativa, tudo se torna para ele elementos da sua incessante busca por conhecimento e sabedoria. Ele acaba por trocar o conhecimento teórico dos franceses iluministas por um dos mais profundos mergulhos nas paixões humanas, uma viagem única.

Andrei, ao contrário de Pierre, jamais consegue se desligar de suas paixões, isso que o torna mais palatável para o leitor moderno, ele é o pendant pessimista, quase niilista, da sede de conhecimento de Bezukhov. Para quem a vida nada mais é do que vaidade, morte e destruição, de um certo modo ele apenas apresenta uma mudança que é a mudança da vaidade guerreira para a máxima desilusão no campo de Austerlitz. A cena do seu ferimento, feito na tentativa tola de levantar a bandeira sob forte assalto da artilharia francesa e sua convalescência no mesmo campo quando depois de contemplar a matança humana e cenas de extrema crueldade ele vislumbra o céu de Austerlitz. Esse céu imenso e completamente alheio a Napoleão, a Kutuzov, a Alexandre, esse céu encerra como poucas metáforas na história da literatura, a completa pequenez humana e a eterna vaidade de todos que se julgam grandes, e quem mais se julgou grande do que o corso que pergunta a Andrei se ele está bem, quando este é transportado para as ambulâncias?

Outra “personagem” inesquecível do romance é o céu, esse céu escuro, misterioso de Austerliz, mas também o auspicioso céu de 1811 cujo cometa anunciava a Pierre, e unicamente a ele, os eventos tão extraordinários do ano seguinte. Ao mesmo tempo que, à sua completa revelia, o carro que passava levando seu cunhado estava no meio de ações igualmente extraordinárias.

Mas além do círculo íntimo das histórias de Natasha, Andrei e Pierre, há o círculo da guerra, que raramente entra em contato, e nele Tolstoi destaca dois personagens: Napoleão e Kutuzov. Napoleão começa em Austerliz como o personagem distante, grandioso, que desbaratou os exércitos de Áustria e Rússia unidos, à medida que ele entra na Rússia, mas nos aproximamos dele, mais Tolstoi nos relata seus pensamentos e seus desejos até que, tal como numa tragédia, a ele revela-se a suprema peripédia da grandeza e do poder que se lhe afiguravam, ele aparece derrotado, humilhado em uma guerra que ele não consegue controlar até fugir com sua Grand Armée dissolvendo-se na retirada de Moscou. Kutuzov atua do outro lado e mostra-se o completo oposto, longe da grandeza de Napoleão, ele sabe que nada pode-se fazer numa guerra e que seus dois principais soldados chamam-se paciência e tempo. Ao contrário de Napoleão, é completamente ignorado e ridicularizado pelos seus semelhantes, mas termina por ser o responsável pela vitória final.

Apesar de uma complexidade que eu só pude arranhar nestas linhas é um romance que dura bem menos do que parece, certamente menos de um décimo da Recherche du temps perdu, pelo menos para mim o Caminho de Swann me foi mais lento e pesado do que todos o romance. Tolstoi tem alguns golpes de escrita muito interessante, seu domínio da narração é excelente, acho digno de nota como ele é capaz de usar e por em evidência a narração em terceira pessoa, mas nunca completamente onisciente, dessa forma ele consegue nos proporcionar a mesma surpresa dos personagens do romance, mesmo quando a gente pode deduzir qual seja a surpresa (muitas vezes ela fora narrada uma centena de páginas anteriormente). O mesmo tipo de narração Tolstoi iria utilizar no Anna Karenina, de forma até mais radical, nas descrições tão detalhadas dos estados mentais, lembro aqui do célebre fluxo de consciência de Anna na sétima parte e também de Daria Oblonskaia em vários momentos. Em Guerra e Paz não chega a tanto, mas esse uso sutil dos focos é muito interessante.

Todos os que leram o romance (e no meu ambiente não é um grupo grande: é a minha profesora de russo e uma professora de teoria da literatura) reclamam das divagações de Tolstoi, no começo elas praticamente não existem, mas a partir da invasão francesa elas crescem e ganham um grande vulto, de minha parte servem de um interessante ensaio filosófico-histórico que não é de se desprezar. O que é realmente problemático é que a história acaba umas 40 páginas antes do fim do livro, depois segue-se um mini-tratado sobre o livre-arbítrio, não é ruim, mas certamente é um tremendo de um anti-clímax, como é um anti-clímax todo o epílogo. Isso também acontece na Anna Karenina, de qualquer forma, Tolstoi os usa para fechar o romance, e é útil. O que é seguro é que Tolstoi não se vale dos finais apocalípticos de Dostoievski.

Uma outra técnica que Tolstoi domina e é especialmente inteligente é da introdução das personagens, principais, tal qual uma sinfonia de Haydn, não aparecem de uma vez, mas são longamente introduzidos na trama. Em Guerra e paz o livro começa em um sarau de Anna Pavlovna, personagem que é completamente irrelevante no resto do livro, em Anna Karenina começa com a crise conjugal dos Oblonski, que são personagens importantes, mas não os quatro principais. Tolstoi sabe introduzir-nos na trama de uma maneira magistral, sem longos prelúdios narrativo-descritivos (a grande falha de Balzac) e sem entradas demasiado bruscas. A única entrada brusca é das crianças, Natasha, Pétia e Kolya Rostov, que parecem irrelevantes no início de 1805, mas tornar-se-ão tão importantes no futuro breve.

É desse palco de paixões, de vaidades, mas que se mostra completamente dependente de forças maiores, que Tolstoi escreve. E é principalmente da busca humana por grandeza, que só pode ser resumida com uma frase do próprio livro:

Для нас, с данной нам Христом мерой хорошего и дурного, нет неизмеримого. И нет величия там, где нет простоты, добра и правды.

Para nós, com a medida nos dada por Cristo do bom e do ruim, não há incomensurável. E não há grandeza onde lá não haja simplicidade, bondade e verdade.

Observações: li uma tradução do francês (não me consta que haja traduções diretas) da editora Ediouro uma edição supostamente de luxo. Entretanto é horrível, a começar pela tradução, dá para pegar erros de tradução do francês, erros de tradução do russo e eventualmente aquele nonsense naturalmente gerado pela tradução indireta, não chega a atrapalhar a leitura do todo, mas às vezes é confuso, comparei várias passagens no original e não foge muito. A qualidade da edição é bem inferior, há, nos últimos dois volumes, uma média de uma gralha por página e um erro de gramática a cada dez, normalmente coisa boba, concordância, mas é inaceitável para qualquer padrão de edição. Inferior mesmo aos bons manuscritos medievais, mais parecendo aqueles rascunhos de Oxirrinco.

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