quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

A história corre mais ou menos assim: num campo de prisioneiros de guerra franceses na primeira guerra mundial, um dos prisioneiros encontra-se sempre com um livro na mão, ao ameaçarem tirá-lo dele ele fala:

-Não me tire o meu Píndaro, é o que eu mais gosto na minha vida, eu trocaria tudo por ele.

Trata-se de um personagem menos importante do filme “A Grande Ilusão”.

Dessa passagem, podemos tirar algumas conclusões fascinantes. A primeira é que o conhecimento médio a respeito lírica grega é seriamente deficitário, uma vez que o tradutor do francês colocou o termo em francês mesmo, e ainda com erro de grafia "Pandare", sem sequer cogitar que este “Pandare” fosse um poeta grego, conhecido (ou não) por estas plagas como Píndaro. Para os antigos, Píndaro era tão importante e relevante quanto Homero ou Ésquilo, nomes cuja fortuna é bem mais venturosa por aqui, qual seria a razão de seu obscurecimento?

Posso arranhar a resposta pela experiência que tenho em sala de aula: há algo em Píndaro que não se casa bem com a concepção moderna de poesia. As razões são várias: a primeira deriva do fato de a métrica pindárica não ser uma métrica regular como a métrica homérica. Isso a torna praticamente intraduzível, mesmo para línguas quantitativas como latim a poesia de Píndaro traduzida perde sua vivacidade particular. Também o vocabulário de Píndaro não ajuda, em especial pelo gosto que a poesia lírica coral tinha por termos extremamente arcaicos e composições louquíssimas - é complicado de verter para uma outra língua Ἀναξιφόρμιγγες (Anaxiforminges), é um termo lindo em grego, mas “Liradominantes”, “Regiliras”, “Aqueles que dominam a lira” são termos ou puramente feios, ou ininteligíveis ou completamente insípido- no mais das vezes os três ao mesmo tempo. Mas o mais importante não são estas razões formais, é um deslocamento da percepção poética, um fenômeno bem característico do século XIX – quando a poesia passou a ser mais e mais interpretada como uma expressão sentimental de um sujeito poético, reduzindo então uma arte a uma egotrip metrificada, e logo depois nem a isso.

Píndaro se encontra muito distante de tal percepção, digamos, byroniana, de poesia (que talvez eu exagere, mas falamos da percepção média). Isso tem várias razões: o seculo XIX é o século do triunfo do romance, ie. da prosa, sobre boa parte da literatura anterior e isso fez a poesia se refugiar em um ambiente mais restrito. Píndaro pertence a um período completamente diferente: ele nasceu nos estertores daquele tipo de civilização tradicional em que a palavra ritmada significava mais do que um meio de entretenimento mas também a base histórica, moral, religiosa de um povo, e se aproveita da súbita liberação da poesia de suas amarras práticas e tradicional e dá asas a aquilo que a poesia tinha, e ainda tem, de mais particular: o uso artístico da palavra em todas suas capacidades: métricas, sonoras, etimológicas, gnômicas.

Toda essa liberdade e toda essa riqueza resultam em uma poesia notoriamente difícil, tão difícil que no século XX houve quem supusesse que tal linguagem de tão artificial fosse ininteligível para qualquer grego e que por isso estava destituída de valor literário. A sintaxe de Píndaro é tão livre que chega a, de fato, desafiar nossa compreensão, ele faz uma mistura muito complexa de vários dialetos gregos, chega a ponto de a gente ficar em dúvida se é um particípio no dativo ou um verbo na terceira do plural, porque ele usa as formas de cada dialeto da maneira mais livre possível.

Você realmente fica no limite do entendimento, mas eu não tenho outra impressão senão que era exatamente esta a intenção dele ao compor, deixar que as associações e as diversas possibilidades sintáticas entreabertas, se completando apenas com a seqüência da obra. Isso se completa com a maravilhosa sucessão gnômica que caracteriza tanto sua poesia, expressões de tamanha beleza como:

ἐπάμεροι τί δὲ τις τί δ΄οὐ τις σκιᾶς ὄναρ
ἄνθρωπος. ἄλλ΄ὅταν αἴγλα διοσδότος ἤλθῃ
λαμπρὸν φέγγος ἔπεστιν ἀνδρῶν
Efêmeros! E quem é? E quem não é? Sonho de uma sombra
É o homem, mas quando o brilho divino alcança
Um claro resplendor sobrevém aos homens

Como disse certa vez a meu orientador: Píndaro é o mais próximo que um ateu pode chegar de uma experiência religiosa.

ἄριστον μὲν ὕδωρ ὁ δὲ χρυσὸς αἰθόμενον πῦρ
ἅτε διαπρέπει νυκτὶ μεγάνορος ἔξοχα πλούτου:
εἰ δ' ἄεθλα γαρύεν
ἔλδεαι, φίλον ἦτορ,
μηκέθ' ἁλίου σκόπει
ἄλλο θαλπνότερον ἐν ἁμέρᾳ φαεννὸν ἄστρον ἐρήμας δι' αἰθέρος,
μηδ' Ὀλυμπίας ἀγῶνα φέρτερον αὐδάσομεν:
ὅθεν ὁ πολύφατος ὕμνος ἀμφιβάλλεται
σοφῶν μητίεσσι, κελαδεῖν
Κρόνου παῖδ' ἐς ἀφνεὰν ἱκομένους
μάκαιραν Ιέ̔ρωνος ἑστίαν,
θεμιστεῖον ὃς ἀμφέπει σκᾶπτον ἐν πολυμάλῳ
Σικελίᾳ, δρέπων μὲν κορυφὰς ἀρετᾶν ἄπο πασᾶν,
ἀγλαΐζεται δὲ καὶ
μουσικᾶς ἐν ἀώτῳ,οἷα παίζομεν φίλαν
ἄνδρες ἀμφὶ θαμὰ τράπεζαν. ἀλλὰ Δωρίαν ἀπὸ φόρμιγγα πασσάλου
λάμβαν', εἴ τί τοι Πίσας τε καὶ Φερενίκου χάρις
νόον ὑπὸ γλυκυτάταις ἔθηκε φροντίσιν,
ὅτε παρ' Ἀλφεῷ σύτο, δέμας
ἀκέντητον ἐν δρόμοισι παρέχων,
κράτει δὲ προσέμιξε δεσπόταν,
Συρακόσιον ἱπποχάρμαν βασιλῆα. λάμπει δέ οἱ κλέος
ἐν εὐάνορι Λυδοῦ Πέλοπος ἀποικίᾳ:


Nobilíssima água, o ouro qual fogo ardente
brilha à noite distinto da altiva riqueza
Se jogos cantar
Caro peito, queres
Jamais olhe para outro astro
Mais quente do que o sol
brilhando ao dia pelo éter vazio
Nem cantaremos jogo maior que o de Olímpia
De onde o hino muito falado é lançado
Com os espíritos do sábios,
Para gloriar o filho de Crono
Chegando à festa beata de Hierão

Que retém justo cetro na frutosa
Sicília, ao colher cumes de todas virtudes
E orna-se também
Com música em flor.
Com as quais brincamos em volta
Da cara mesa sempre. Mas a Dória
lira do pedestal pega,
mas se a glória de Pisa e Ferenico
infundiu sua mente
com os mais doces dos cuidados
quando, junto ao rio alfeu,
lançou-se oferecendo o corpo sem esporas
e misturou seu senhor com a vitória:
o rei cavaleiro de Siracusa
E brilha a sua glória
Na larga colônia do Lídio Pélope

Como é um poema longo (são quase duzentos versos) um trecho normalmente acaba não sendo sempre fiel à obra completa. No entanto Píndaro é um mestre da concisão e muitas vezes a gente acaba traduzindo com fórmulas muito verbosas, por exemplo:

ὁ δὲ χρυσὸς αἰθόμενον πῦρ
ἅτε διαπρέπει νυκτὶ μεγάνορος ἔξοχα πλούτου

Está escrito literalmente:

E o ouro, incandescente fogo
Como brilha noite altiva eminente riqueza

Evidentemente o português não permite o jogos de declinação que fazem-nos saber que é a riqueza que é altiva e não a noite, tampouco existe em português a possibilidade de posposição de conjunções. A idéia que Píndaro quer passar é de que o ouro brilha de uma forma mais elevada do que a riqueza que ele representa – ou seja, ele separa o valor real do ouro de seu valor como moeda de troca, o ouro é mais importante pela sua beleza do que pelo seu valor. Esta é uma idéia nobre na sua essência e está ligada em uma série muito longa de comparações, a água, o fogo, o ouro, o sol, que perfazem um encadeamento que leva aos jogos olímpicos. É um priamel muito bonito e serve como introdução não apenas para esta ode, como para todas as odes deste livro, dedicadas aos vencedores dos jogos Olímpicos.

Traduzir Píndaro seriamente é uma tarefa que não desejo ter, sua métrica baseada na composição de estrofes extremamente complexas (os versos não são unidades completas mas apenas trechos métricos que compõem a estrofe) que são praticamente impossíveis de se recompor em português. Talvez a única maneira seja procedendo no uso de vários versos famosos para compor uma estrofe de versos variados, uma redondilha maior, duas redondilhas menores, um alexandrino, que foi o que fiz. Como o trecho traduzido ainda nem completou uma volta completa de estrofes, antístrofes e epodos, ainda não testei esse método nas repetições métricas, talvez eu continue a traduzir o poema para ver se consigo.
Esse tipo de poesia foi abandonado já na época clássica, está ligado a um tipo de educação que caiu de favor com o surgimento da democracia ateniense e depois dos reinos helenísticos. É baseado na mitologia e na religião arcaica e carrega um profundo senso nobre, Píndaro valoriza e eleva os ideais da nobreza grega em sua última floração
A poesia lírica de Píndaro foi o único gênero literário que não foi com sucesso repetido na era moderna. As razões são várias, primeiro que se trata de uma amálgama entre poesia e música que nunca mais iria se repetir, depois da introdução da retórica na literatura e depois da chegada do virtuosismo na música grega, estas duas artes estavam fadadas a se separarem. A poesia ficou mais discursiva e menos imagética e a música mais virtuosa, impedindo o reconhecimento da poesia. Outro fator é que o extremo virtuosismo lingüístico necessário para esse tipo de poesia só existe no grego clássico, o latim de Horácio não lhe permite aproximar da liberdade sintática de Píndaro.

Mas houve quem tentasse, um caso famoso e de razoável sucesso, além de Horácio, é de Ronsard, que também tentou escrever suas odes Pindáricas, a invenção métrica dessas obras é inigualável na poesia francesa, mas ficou sem escola, uma vez que a reação neoclássica de Malherbe fez dessa poesia flamboyant um modelo de mau gosto e exagero. Mas temos os poemas de Ronsard como um testemunho único nos tempos modernos desse lirismo rico inspirado em Píndaro.

sábado, 19 de setembro de 2009

A reforma protestante foi o mais importante catalizador da sociedade alemã em toda sua história. Dão testemunho disso as grandes convulsões geradas pela revolta dos camponeses, a intensa atividade literária que seguiu-se, no círculo dos cantores de Nuremberg, e em muitos outros lugares e ambientes da sociedade alemã. De um certo modo foi o grande surto nacionalista germânico, ou o seu nascimento, apesar de um estado alemão já existir há muito tempo, o Heiliges Römisches Reich era demasiado latino, ligado ao papa, muito italiano, e não representava a Alemanha como a nação que nascia. Como prova disso, um dito espirituoso do imperador alemão Carlos V: “Falo espanhol com Deus, italiano com as mulheres, francês com meus homens e alemão com meu cavalo”- no ambiente do Renascimento, a Alemanha não representava mais do que isso.

Apenas para ver como sucedeu-se uma explosão nacionalista, antes de separar-se completamente de Roma, Lutero e outros alemães exigiam a realização de um concílio em território germânico. Há interesses práticos nessa exigência – as comunicações e transportes, especialmente o transporte transalpino, eram muito deficientes no século XVI, o que deixaria os luteranos com especial vantagem nesse concílio – mas trata-se de uma questão simbólica, de valorizar a Alemanha que então nascia para o mundo.

Na verdade não chegou a nascer, os eventos subseqüentes a essa época, a guerra dos trinta anos em especial, viriam a assegurar a divisão da Alemanha em diversos territórios independentes (o método que se encontrou para preservar a reforma) e de certa forma frear esse renascimento cultural até a Aufklãrung. Mas tiveram pelo menos um grande efeito: o desenvolvimento da música nacional alemã.

Pois foi dois séculos antes de Bach que as bases da cultura alemã foram fundadas. E nela está o coral luterano, a importância dele é inestimável: fomentando a criação de músicos nas mais diversas igrejas, criando portanto uma cultura de conhecedores e alimentadores de música, especialmente o desenvolvimento de famílias ligadas à música por gerações e gerações (no centro musical da época, a Itália, no período a atividade era desenvolvida principalmente por padres e consistia no monopólio absoluto do Vaticano). É óbvio que a influência de outros lugares foi importante e que a música alemã não permaneceu isolada por dois séculos, mas a reforma gerou uma cultura musical muito diferente da cultura transalpina e que seria responsável, nos anos seguintes, pela obra de Bach e Händel – isso em um ambiente musical que era praticamente inexistente até então.

Curiosamente, fato oposto aconteceu na civilização insular: a Inglaterra dos séculos XV e XVI é um dos mais importantes centros musicais do mundo ocidental, centro de várias inovações harmônicas, com John Dunstable, por exemplo; formais e instrumentais (foi na Inglaterra que um instrumento de teclado ganhou independência e repertório próprio). É na Inglaterra desse período que vemos as obras brilhantes dos madrigalistas ingleses, dos virginalistas ingleses desafiarem a noção de dissonância da forma mais radical até então, é lá que vemos obras extremamente ousadas como o moteto Spem in alium de Thomas Tallis exigir 40 (!) vozes. É a Inglaterra o país de compositores como William Byrd, Orlando Gibbons, John Taverner, alguns dos mais importantes de seu tempo.

Fato curioso, todos estes compositores estavam ligados à igreja Católica, a Igreja britânica era responsável pela manutenção e ensino de instrumento e canto para grande parte da população britânica e para ela trabalhava toda a elite musical de sua época: Byrd, Taverner Thallis, etc.

Não era uma música simples, já falei da ousadia harmônica que caracteriza toda a escola, de Dunstable levando à frente o uso de resoluções em terças, de trítonos e sétimas menores nos madrigalistas, no uso de uma polifonia cada vez mais refinada em Thomas Thallis. Era também uma música de muita ornamentação, de uma rica tradição instrumental. A reforma inglesa começou como um incentivo estilístico, mas iria ter efeitos muito mais profundos. O primeiro é que, como foi dito, a elite musical era católica e, com algumas poucas exceções, permaneceu fiel a seu credo (por sorte William Byrd não teve a sorte de Sir Thomas More...), o que fez com que ainda que, por obrigação, compondo música anglicana, seus maiores esforços se concentram ou na silenciada liturgia católica (Thallis e Byrd publicaram ainda vários motetos latinos, e ainda dedicaram à rainha Elizabeth, Byrd comporia missas onde a ênfase dada ao et in unam sanctam catholicam et apostolicam ecclesiam não eram casuais). Num momento seguinte, com o fim da geração que viveu a reforma, a música inglesa migrou quase que completamente para a música profana: é no teclado, no madrigal, nas canções que vemos o gênio de Gibbons, Dowland e Bull florescer, não na música anglicana, que já estava em completa decadência, mal havia surgido.

Mas o pior estava por vir, no período da guerra civil e da British Commonwealth a fúria dos puritanos contra aquilo que via como parte dos excessos do catolicismo foi geral e os coros das igrejas foram dissolvidos, os órgãos silenciados e qualquer tipo de música completamente banido. A música que experienciara um tímido impulso pela liturgia anglicana agora estava proscrita das igrejas.

O resultado foi óbvio e imediato, e significou o fim absoluto de qualquer forma de música na Inglaterra, ainda que não houvesse proibição de música profana, todas as formas de ensino e propagação dela estavam encerradas e com isso uma brilhante tradição de dois séculos foi devidamente encerrada. Logo depois da restauração, ainda houve um caso raro, que podemos apenas interpretar como um espasmo do sistema antigo, que é brilhante obra de Purcell. Mas daí em diante, a Inglaterra ficou muda por século a fio.

É inestimável o que se perdeu com a aventura de Cronwell, significou o fim completo da música britânica, o que perdura, de uma certa forma até hoje. Houve depois de Purcell alguns bons compositores, menos Elgar, mais Britten, mas comparado com qualquer outro país da Europa continental, a tradição musical britânica é quase nula. Aquilo em que a Inglaterra especializou-se, e o é até hoje, é no patrocínio e financiamento de compositores e instrumentistas continentais, e só pelo incentivo a Handel, JC Bach, Mozart, Haydn, Mendelssohn, Brahms, Dvorák, entre muitos outros, que a Inglaterra exerceu alguma importância histórica.

A música faz parte da história religiosa e esta tem uma profunda influência no surgimento e na criação da música. Não apenas ela deriva de práticas religiosas, como estas influenciaram por quase 1000 anos seu desenvolvimento. Poderia prosseguir, comentar como na Rússia o desenvolvimento de uma música clássica foi retardado pela liturgia ortodoxa, nào que a música ortodoxa seja feia (não é, pelo contrário) e muito menos que não tenha grande utilidade litúrgica (talvez até mais do que o madrigal de 40 vozes do Thallis), mas a sua fixação e simplicidade são como um empecílho para o desenvolvimento de outras formas de música. Na Rússia a música se desenvolve com a influência da corte ocidentalizada de Pedro II e, principalmente, de Catarina, a Grande, que criou um teatro fixo de ópera, trouxe compositores como Cimarosa, Hasse e muitos outros, ela surge como uma influência ocidental, e vai continuar sempre uma música profana.