sábado, 19 de setembro de 2009

A reforma protestante foi o mais importante catalizador da sociedade alemã em toda sua história. Dão testemunho disso as grandes convulsões geradas pela revolta dos camponeses, a intensa atividade literária que seguiu-se, no círculo dos cantores de Nuremberg, e em muitos outros lugares e ambientes da sociedade alemã. De um certo modo foi o grande surto nacionalista germânico, ou o seu nascimento, apesar de um estado alemão já existir há muito tempo, o Heiliges Römisches Reich era demasiado latino, ligado ao papa, muito italiano, e não representava a Alemanha como a nação que nascia. Como prova disso, um dito espirituoso do imperador alemão Carlos V: “Falo espanhol com Deus, italiano com as mulheres, francês com meus homens e alemão com meu cavalo”- no ambiente do Renascimento, a Alemanha não representava mais do que isso.

Apenas para ver como sucedeu-se uma explosão nacionalista, antes de separar-se completamente de Roma, Lutero e outros alemães exigiam a realização de um concílio em território germânico. Há interesses práticos nessa exigência – as comunicações e transportes, especialmente o transporte transalpino, eram muito deficientes no século XVI, o que deixaria os luteranos com especial vantagem nesse concílio – mas trata-se de uma questão simbólica, de valorizar a Alemanha que então nascia para o mundo.

Na verdade não chegou a nascer, os eventos subseqüentes a essa época, a guerra dos trinta anos em especial, viriam a assegurar a divisão da Alemanha em diversos territórios independentes (o método que se encontrou para preservar a reforma) e de certa forma frear esse renascimento cultural até a Aufklãrung. Mas tiveram pelo menos um grande efeito: o desenvolvimento da música nacional alemã.

Pois foi dois séculos antes de Bach que as bases da cultura alemã foram fundadas. E nela está o coral luterano, a importância dele é inestimável: fomentando a criação de músicos nas mais diversas igrejas, criando portanto uma cultura de conhecedores e alimentadores de música, especialmente o desenvolvimento de famílias ligadas à música por gerações e gerações (no centro musical da época, a Itália, no período a atividade era desenvolvida principalmente por padres e consistia no monopólio absoluto do Vaticano). É óbvio que a influência de outros lugares foi importante e que a música alemã não permaneceu isolada por dois séculos, mas a reforma gerou uma cultura musical muito diferente da cultura transalpina e que seria responsável, nos anos seguintes, pela obra de Bach e Händel – isso em um ambiente musical que era praticamente inexistente até então.

Curiosamente, fato oposto aconteceu na civilização insular: a Inglaterra dos séculos XV e XVI é um dos mais importantes centros musicais do mundo ocidental, centro de várias inovações harmônicas, com John Dunstable, por exemplo; formais e instrumentais (foi na Inglaterra que um instrumento de teclado ganhou independência e repertório próprio). É na Inglaterra desse período que vemos as obras brilhantes dos madrigalistas ingleses, dos virginalistas ingleses desafiarem a noção de dissonância da forma mais radical até então, é lá que vemos obras extremamente ousadas como o moteto Spem in alium de Thomas Tallis exigir 40 (!) vozes. É a Inglaterra o país de compositores como William Byrd, Orlando Gibbons, John Taverner, alguns dos mais importantes de seu tempo.

Fato curioso, todos estes compositores estavam ligados à igreja Católica, a Igreja britânica era responsável pela manutenção e ensino de instrumento e canto para grande parte da população britânica e para ela trabalhava toda a elite musical de sua época: Byrd, Taverner Thallis, etc.

Não era uma música simples, já falei da ousadia harmônica que caracteriza toda a escola, de Dunstable levando à frente o uso de resoluções em terças, de trítonos e sétimas menores nos madrigalistas, no uso de uma polifonia cada vez mais refinada em Thomas Thallis. Era também uma música de muita ornamentação, de uma rica tradição instrumental. A reforma inglesa começou como um incentivo estilístico, mas iria ter efeitos muito mais profundos. O primeiro é que, como foi dito, a elite musical era católica e, com algumas poucas exceções, permaneceu fiel a seu credo (por sorte William Byrd não teve a sorte de Sir Thomas More...), o que fez com que ainda que, por obrigação, compondo música anglicana, seus maiores esforços se concentram ou na silenciada liturgia católica (Thallis e Byrd publicaram ainda vários motetos latinos, e ainda dedicaram à rainha Elizabeth, Byrd comporia missas onde a ênfase dada ao et in unam sanctam catholicam et apostolicam ecclesiam não eram casuais). Num momento seguinte, com o fim da geração que viveu a reforma, a música inglesa migrou quase que completamente para a música profana: é no teclado, no madrigal, nas canções que vemos o gênio de Gibbons, Dowland e Bull florescer, não na música anglicana, que já estava em completa decadência, mal havia surgido.

Mas o pior estava por vir, no período da guerra civil e da British Commonwealth a fúria dos puritanos contra aquilo que via como parte dos excessos do catolicismo foi geral e os coros das igrejas foram dissolvidos, os órgãos silenciados e qualquer tipo de música completamente banido. A música que experienciara um tímido impulso pela liturgia anglicana agora estava proscrita das igrejas.

O resultado foi óbvio e imediato, e significou o fim absoluto de qualquer forma de música na Inglaterra, ainda que não houvesse proibição de música profana, todas as formas de ensino e propagação dela estavam encerradas e com isso uma brilhante tradição de dois séculos foi devidamente encerrada. Logo depois da restauração, ainda houve um caso raro, que podemos apenas interpretar como um espasmo do sistema antigo, que é brilhante obra de Purcell. Mas daí em diante, a Inglaterra ficou muda por século a fio.

É inestimável o que se perdeu com a aventura de Cronwell, significou o fim completo da música britânica, o que perdura, de uma certa forma até hoje. Houve depois de Purcell alguns bons compositores, menos Elgar, mais Britten, mas comparado com qualquer outro país da Europa continental, a tradição musical britânica é quase nula. Aquilo em que a Inglaterra especializou-se, e o é até hoje, é no patrocínio e financiamento de compositores e instrumentistas continentais, e só pelo incentivo a Handel, JC Bach, Mozart, Haydn, Mendelssohn, Brahms, Dvorák, entre muitos outros, que a Inglaterra exerceu alguma importância histórica.

A música faz parte da história religiosa e esta tem uma profunda influência no surgimento e na criação da música. Não apenas ela deriva de práticas religiosas, como estas influenciaram por quase 1000 anos seu desenvolvimento. Poderia prosseguir, comentar como na Rússia o desenvolvimento de uma música clássica foi retardado pela liturgia ortodoxa, nào que a música ortodoxa seja feia (não é, pelo contrário) e muito menos que não tenha grande utilidade litúrgica (talvez até mais do que o madrigal de 40 vozes do Thallis), mas a sua fixação e simplicidade são como um empecílho para o desenvolvimento de outras formas de música. Na Rússia a música se desenvolve com a influência da corte ocidentalizada de Pedro II e, principalmente, de Catarina, a Grande, que criou um teatro fixo de ópera, trouxe compositores como Cimarosa, Hasse e muitos outros, ela surge como uma influência ocidental, e vai continuar sempre uma música profana.

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